A internet veio à baixo quando os ataques racistas à jornalista Maria
Julia Coutinho, ocorridos em 2015, foram expostos. Houve indignação por parte de
muitos, campanhas por parte de outros e surpresa por partes de alguns (muitos
alguns, eu diria). Comentários do tipo “não acredito que isso esteja
acontecendo em pleno século 21” invadiram as redes sociais. Para mim, mulher
negra de 28 anos, e para a maioria da população brasileira, também negra, foi
apenas mais um dia comum debaixo do sol. O racismo é uma vivência diária em
nossas vidas, seja indiretamente através de piadinhas do “senso comum”, seja na
negação de oportunidades e direitos, no apagamento identitário, enfim.
Outros casos, com menos hashtags e compartilhamentos, mas, exatamente iguais, ocorreram em um curto
espaço de tempo com pessoas públicas: a cantora
Ludmilla, funkeira negra, foi chamada de “negra macaca
feia” em sua rede social e depois, ao vivo, por um apresentador de programa; o Mc
Nego do Borel, recebeu xingamentos racistas em seu próprio show,
que terminou em confusão; e o ator mirim, Jean
Paulo Campos, o Cirilo
da nova versão de Carrossel, mesmo sendo apenas uma criança, não
foi poupado em foto publicada em uma página. Muito poderia ser dito sobre essas
ocasiões, principalmente, por não serem isoladas. Mas, aproveitando a surpresa
de muitas pessoas que estão alheias à luta diária e às constantes denúncias dos
movimentos e militantes negros, gostaria de levantar a seguinte questão (que
responderei em seguida, porque sou dessas): se o
racismo é constante na nossa sociedade, porque, aparentemente, só agora os
racistas estão dando as caras? Eu
disse APARENTEMENTE e acho que não preciso explicar por quê. Vocês vão dizer
que é por causa da internet, essa suposta terra de ninguém, que dá a falsa
impressão de anonimato (já que racismo e covardia são duas coisas inerentes).
Sim, eu concordo. Mas, acredito que a rede é apenas o tronco da árvore. A raiz
é mais profunda e sutil: o empoderamento econômico e social da população negra.
Explico.
Após o fim da escravidão, a população negra passou a ocupar espaços que
lhes foram muito bem delimitados pela sociedade da época. Com papeis de
solturas às mãos, os negros se viram numa escravidão
econômica e social, já que esses seres que eram tidos como
propriedade e recebiam tratamento sub-humano não passaram a ser respeitados de
um dia para o outro. Mais de um século depois, esses espaços não sofreram
muitas mudanças e é o que chamamos de “herança
histórica“. À população negra coube os empregos subalternos,
de servidão, que em muito lembram a época dos sinhôs e sinhás. Óbvio que estes
cargos são merecedores de respeito como qualquer outro, mas, porque essa
parcela da população nunca foi vista como merecedora dos outros cargos também?
Pois,
nos últimos anos, essa questão foi colocada em pauta e, através de programas de
inclusão, foi possibilitado a muitos, privilégios que, até então, eram de
exclusividade da classe média/alta (formada, quase completamente, por brancos).
Ascensão social, poder de compra, acesso aos bancos acadêmicos, cargos em
empresas. E a internet, essa ferramenta que pode ser tão cruel por um
lado, por outro, tem contribuído muito para o autoempoderamento dessas pessoas
que passaram a vida toda tendo suas características sendo inferiorizadas. A
representatividade que nunca existiu nas chamadas grandes mídias, ganhou espaço
nas redes sociais. A história que não é contada nos livros do colégio é
relatada em páginas de Movimentos Sociais e portais voltados às temáticas
negras.
Reconhecer-se como parte de algo, reconhecer-se em histórias de sucesso
faz com que seja resgatada uma identidade que vem sendo apagadas por todos
esses anos. Ao contrário do que tentam vender a televisão, a indústria e todo
um sistema, o negro tem se conscientizado da força e da beleza
que possui na pele, nos cabelos, nos traços. E o melhor, tem exposto
cada vez mais essa beleza tão característica. É crescente o número de mulheres
que estão deixando os tratamentos químicos de lado para assumirem seus cachos
(eu estou nesse caminho). É cada vez maior a quantidade de pessoas que se
identificam como negras, em vez dos “atenuantes” morenas, pardas. Os negros
estão se orgulhando de serem negros e,
caros leitores, vocês podem não acreditar, mas, isso incomoda MUITO. Ver essa
parte da população sair dos porões sociais e assumir papeis que lhe foram
negados durante séculos causam nas pessoas que, do testamento histórico,
herdaram o preconceito, um medo absurdo de perder
a posição de privilégio. Enquanto a população negra aparecia
na televisão apenas em papeis de domésticas ou programas policiais, era fácil o
racismo permanecer velado. “Vocês não são chicoteados, mas, eu ainda olho para
vocês de cima”. Porém, olhar para o lado e ver uma pessoa de pele escura como
um igual, como um dos seus, feliz por ser quem é, é algo praticamente
inconcebível para muitos.
Na minha vida familiar, duas passagens de teores diferentes deixaram
muito claro que para parte da sociedade, nosso lugar não é onde estamos. Como
disse, sou negra, meu pai é negro e, infelizmente, faço parte de uma parcela
privilegiadíssima da população brasileira. O pesar é porque meu desejo é de
que minha posição fosse regra e não exceção. Se o mundo fosse perfeito e a meritocracia uma realidade, meu pai, o
preto mais lindo da existência pra mim, seria o exemplo perfeito dessa
meritocracia: o homem conseguiu se formar em quatro universidades, sempre
trabalhando muito e estudando o dobro, em uma época em que não havia nenhum
subsídio. Meus avós eram pobres, não tiveram estudos e tudo que meu pai
conseguiu até hoje foi com muito muito muito esforço e suor (e ele é o maior
orgulho da minha vida).
Confesso que sempre tenho um pouco de receio ao contar a história dele,
porque somos aqueles que o sistema vai buscar para usar de desculpa e fingir
que não há problema nenhum na sociedade e que a política
de inclusão não é necessária:
vocês, negros restantes do mundo, que não se esforçaram o suficiente. Mentira.
Balela. Muitos são os aspectos que impedem uma pessoa de ter condições melhores
de vida, mesmo que se esforcem. Ambiente, histórico familiar, acesso à saúde,
pressão social, enfim. Não vou me estender neste ponto. Caso não entendam o que
estou querendo dizer, sugiro que façam uma busca sobre “o
mito da meritocracia“. Isso tudo foi apenas para que entendessem que,
devido aos esforços do meu pai, eu e minha irmã tivemos acesso a uma educação
de altíssima qualidade. Fazendo uma continha básica, ensino de qualidade =
colégios particulares = dinheiro para pagar = convívio com pessoas de classe
média/alta. Sempre fomos as únicas ou quase únicas negras dos colégios pelos
quais passamos.
E
aqui vem a primeira passagem: minha irmã é mais velha que eu 7 anos e sempre
foi adorada pelos amigos e pelos pais dos amigos. Ela tinha um melhor amigo
que, acho eu, desde o começo nutria algo mais que amizade por ela. A mãe desse
amigo fazia jantares na casa deles e convidavam todos da turma para estarem lá.
Até que, um dia, minha irmã passou a sentir algo a mais também por ele e os
dois começaram a namorar. Parecia que seria algo muito fácil de desenrolar, já
que minha família adorava o menino e, ao que parecia, a família dele sentia o
mesmo pela minha irmã. Mas, ficou tudo no parecer mesmo. A mãe, quando viu que
de amiga, minha irmã passaria a ser nora, simplesmente surtou e tentou de todas
as formas impedir que o namoro desse certo.
Em meio às inúmeras atitudes ofensivas, ela deixou muito claro que o
filho dela não iria se relacionar com uma preta. Que seus netos não seriam
pretos, de cabelo ruim. E que se ele continuasse com essa ideia, sofreria as
consequências. Minha irmã tinha apenas 16 anos. Ele, uns 18. Isso doeu não só
nela, mas, em cada membro da minha família e até nos amigos próximos. Nessa
situação, o amor venceu o preconceito. Como mais um caso de exceção, o amigo enfrentou os pais, perdeu suas
regalias e continuou o namoro com a minha irmã. Durou alguns anos (que não
foram fáceis). Meus pais abraçaram os dois e mostraram, principalmente para
ela, que não estava sozinha. A negritude da minha irmã nunca tinha sido
respeitada por aquela mulher. Tinha sido apenas ignorada. Porém, a
possibilidade de ter o sangre negro circulando nas veias dos seus, de ter uma
negra em completa igualdade fez com que o preconceito velado viesse à
tona. Algo como, “você pode até ter uma boa posição social, mas, jamais
fará parte de uma família como a minha”. Agora pensem: a quantas mulheres e
homens negros o afeto não é negado, em situações semelhantes?
(…) a minha
ameaça não carrega bala, mas incomoda o meu vizinho.
O imaginário dessa gente dita brasileira é torto,
O imaginário dessa gente dita brasileira é torto,
grita pela minha pele, qual será o meu fim?
(Ellen Oléria – Testando)
(Ellen Oléria – Testando)
A segunda situação que nos ocorreu exemplifica o quanto a ascensão
social de um negro não é vista como natural. Saímos todos para comprar um sofá. Minha família é dessas que todo
mundo quer palpitar em tudo em casa. Na loja, demoramos um pouco para sermos
atendidos, o que nos deu tempo de escolher a peça que queríamos. Quando um
vendedor, enfim, nos abordou, meu pai quis saber qual era o valor à vista, se
tinha algum desconto. Foi meio tragicômico, mas, o vendedor fez de tudo para
não falar o preço do móvel. Rodeou e depois que meu pai, já um pouco
impaciente, insistiu e disse que tinha dinheiro para pagar, muito embaraçado, o
rapaz passou o valor. Levamos o sofá, mas, obviamente, pedimos que a compra
fosse finalizada por outro vendedor. Para nós, a postura que ele teve deixou
evidente que, na cabeça daquele homem, nosso lugar não era ali.
“‘Eu
quero, eu compro e sem desconto!’,
à vista, mesmo podendo pagar tenha certeza que vão desconfiar.
Pois o racismo é disfarçado há muito séculos,
não aceita o seu status e sua cor”
(Racionais Mcs – Eu Compro)
à vista, mesmo podendo pagar tenha certeza que vão desconfiar.
Pois o racismo é disfarçado há muito séculos,
não aceita o seu status e sua cor”
(Racionais Mcs – Eu Compro)
Aproveitando o trecho da música dos quatro pretos mais perigosos do
Brasil, algo que para mim mostra exatamente o incômodo com ascensão do negro é
o preconceito pesado que existe contra
o chamado funk ostentação. Vejo muita gente justificar dizendo
que essa ostentação induz ao consumismo e coisas do tipo e, por isso não gostam
do estilo. Ok, é um argumento válido. Mas, por que não vejo o mesmo sendo dito
do sertanejo universitário ostentação? O que? Nunca ouviu falar do sertanejo
ostentação? Justamente. Não existe essa categorização para uma parte do estilo
que começou a ser cantado e consumido por jovens universitários de maioria
branca (e hoje é sensação no país todo). E eu não vejo diferença entre tirar
onda numa Hornet, com plaquê de cem, num Camaro amarelo ou numa Dodge Ram. Veja
bem, a questão aqui não é se as músicas são boas ou ruins, mas, o porquê de
conteúdos tão parecidos (festas, carros, sexo e mulheres) terem uma carga tão
diferente de aceitação. Vamos refletir? Vamos!
Imagino que, após esse textão, existirão pessoas tentando argumentar
cada ponto ou relativizar essa ou aquela situação. Aos que acharem que “ah não
é bem assim”, sinto informá-los de que vocês
estão reproduzindo racismo. As situações vão muito além dessas,
em níveis bem mais profundos, e estão aí, dia após dia, para provar cada
vírgula dita aqui. A democracia racial no nosso país é tão folclórica quanto
curupira e saci pererê (já pararam para pensar que nossas lendas mais
conhecidas são um índio e um negro, ambos com caráter questionável?).
É preciso muito mais que hashtags e indignações para que o racismo
acabe. É necessária uma desconstrução diária e constante de tudo que nos cerca. A primeira delas é reconhecer que,
mesmo sendo uma pessoa que quer o bem da humanidade e a igualdade entre os
povos, vez ou outra, pode ter praticado algum ato de racismo. Aquela piadinha
sobre o cabelo de um, sobre a canela fina de outra; aquela expressão da língua
portuguesa; aquela desconfiança que um negro caminhando ao seu lado te traz
(que não tem o mesmo teor quando é um branco). E, acima de tudo, ouvir os que
realmente sofrem com todos esses atos: os negros. O
povo preto é vítima, mas, jamais será vitimista. Aliás, tem que ser muito forte para conseguir enfrentar as porradas da
sociedade diariamente.
Mas,
incomodando pouco ou muito, estamos ascendendo e acendendo. Por vias
econômicas, pelas artes, pela religião, pela estética estamos buscando e
ocupando nossos espaços. E isso não está acontecendo porque o preconceito está
diminuindo, mas, porque nossa consciência e orgulho negros estão aumentando.
Estamos empoderando e sendo empoderados. E assim seguirá. Estamos vivos e
racistas não passarão.
Victoria Santa Cruz foi uma ativista afroperuana,
poeta, coreógrafa, folclorista, desenhista que usava sua arte no combate ao
racismo. Assisti este vídeo pela primeira vez há alguns anos e, mesmo tendo o
visto de centenas de outras vezes, a emoção é sempre a mesma.
P.S.:
Talvez alguns de vocês estejam se perguntando da incoerência do título. Na
época da Colônia e até no Império, o negro que tivesse alcançado a liberdade e
condições acadêmicas que permitissem cargos de proeminência social, deveria
assinar um documento chamado “Dispensa do defeito de cor”. Ele tinha que pedir,
oficialmente, que sua cor não fosse levada em consideração, pois era totalmente
assimilado aos valores civilizatórios eurocêntricos. Qualquer semelhança com os
dias atuais, não é mera coincidência. Está em circulação, hoje, um livro de
nome quase igual “Um defeito de Cor” da escritora Ana Maria Gonçalves. Mais que
um romance, é um registro histórico importantíssimo para a compreensão de como
se deu a escravidão no país. Fica a dica.
*texto escrito, originalmente, para o IT Online em julho/2015
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